TÁ COM ÓDIO?
COSPE NO ESPELHO!
O ódio nos espreita até vir à tona como um vírus que, não tendo vida própria, comanda o hospedeiro quando metabolizado. É típico dos humanos, mas não aflora do instinto. É aprendido. Resulta da disputa por poder e da falta de identificação intraracial (este processador de texto e os mecanismos de busca da internet não reconhecem essa palavra em português, que aqui quero utilizar no contexto de reconhecimento entre membros de uma mesma raça: a humana).
Esse sentimento que aciona mecanismos internos de repulsão, manifesta-se sob várias formas e em diversas circunstâncias do relacionamento humano, saindo, inevitavelmente, do campo individual para se transformar em um combustível de projeção coletiva da sede de domínio, implantada culturalmente no psiquismo humano. Torna-se uma ferramenta útil socialmente para a manutenção de um arcabouço moral baseado no materialismo e na disputa pelo poder econômico.
O ódio dorme latente nas crenças injetadas pelas forças que controlam ideologicamente as sociedades em todos os sistemas econômicos: capitalista, socialista ou de composição mista. No capitalismo prevalece o interesse pelo divisionismo da raça humana que induz ao individualismo, egocentrado e excludente, minando qualquer construção coletiva saudável. E no socialismo, impõe-se o coletivismo enquanto método de organização econômica e social, matando o potencial criativo e libertário do indivíduo. Um paradoxo que demonstra o ponto de intersecção das ideologias: fortalecer o poder político e econômico de quem o possui ou pretende.
Todos os combos ideológicos geram o enclausuramento das potencialidades humanas, valendo-se da influência cultural e da manipulação dos conceitos de individualidade e coletividade para fins materialistas, conservando, por perpetuidade ou alternância, os grupos que circundam o poder. Jogam cartas com a nossa vulnerabilidade ao não desvendarmos o sentido da nossa própria existência. Abafam quaisquer caminhos que possam conduzir-nos ao autoconhecimento e ao desenvolvimento interativo de uma consciência individual e coletiva. Desconsideram nossos dilemas existenciais disciplinando-nos apenas para lidarmos pragmaticamente com a materialidade da vida, sem alteração da estrutura de poder que comanda as relações sociais.
Para a moldagem humana a serviço dos interesses dos poderosos, são forjadas falsas crenças de superioridade por atributos físicos ou intelectuais de uns em relação a outros, mantendo-nos competitivos e individualistas, aniquilando qualquer percepção empática que nos identifique como seres pertencentes ao mesmo gênero humano.
Desde cedo aprendemos a associar flexibilidade e afetividade com fraqueza, pacifismo e tolerância com inépcia, e confiança no próximo como prenúncio de traição. Estereotipamos a supremacia em um corpo branco, biologicamente perfeito, detentor de recursos intelectuais para a geração de ativos financeiros e bens patrimoniais – para si ou para o Estado – e sexualmente encaixado no padrão reprodutor.
Estipulando-se referenciais de superioridade, características fora dessas premissas são computadas para estabelecer as gradações de poder que vão se formando em muitas variáveis combinadas, nas diversas esferas do relacionamento humano: família, sociedade e nação, irradiando-se até as mais minúsculas células sociais. E como toda superioridade é irmã siamesa da inferioridade, ainda que seja oprimido em algum núcleo, o ser humano validará esse modelo opressor de forma compensatória em outro, resgatando alguma sensação de poder. Ou seja, em qualquer escala social lá estará o ser humano fazendo valer a sua falsa concepção de mérito baseada na superioridade e na disputa, calcificando-a em dogmas religiosos, político-ideológicos, em preconceitos étnicos e em tantas outras formas de ódio como racismo, misoginia, homofobia…
O que não falta são pessoas do bem imbuídas de uma raiva santa dando “carteirada religiosa” e pregando a destruição em nome de Deus, assim como “carteiradas acadêmicas” por intelectuais revolucionários e ateus que, raivosos, estimulam a vingança social. Mais uma prova de que Deus ou a sua inexistência não é o ponto nevrálgico da nossa desagregação enquanto raça humana, e tampouco a nossa salvação. Tomados pela vaidade e pelo orgulho, nos odiamos e nos desqualificamos mutuamente como se não fossemos seres de uma mesma espécie, necessitando urgentemente encontrar um caminho de coexistência.
É possível inferir, sem qualquer pretensão científica e mais como um constructo, que o ódio, nas suas manifestações mais exacerbadas e coletivas, não se desenvolve a partir de uma elaboração complexa. A xenofobia, por exemplo, que é o asco étnico e cultural que se expressa institucionalmente por órgãos nacionais e movimentos separatistas, ganha corpo a partir da boca dos cidadãos pela expansão das dificuldades corriqueiras de convivência com o vizinho, com o diferente, com o outro.
Estabelece-se uma guerra cotidiana ininterrupta de poder que incentiva o engajamento coletivo dos indivíduos nas causas de grupos que manipulam as rotas de conquista ou manutenção do seu poderio com objetivos meramente materialistas. Com isso, o indivíduo não vislumbra uma alternativa de reequilíbrio das relações humanas fora do espectro político-econômico, uma vez que esse é o paradigma que norteia o mundo e se configura como a única porta de saída para a humanidade. Valores filosóficos, morais e espirituais subordinam-se à premência da sobrevivência material. Parece não ter importância que a vida física seja finita ou transitória para o indivíduo, pois a sociedade sobrevive com a substituição dos seus membros. Nesse modelo de funcionamento, a existência dos seres humanos individualmente não significa nada e apenas serve à sustentação do corpo social, embora cada vida mal vivida o impacte diretamente.
Com quais esferas de poder lidamos? Que sentido damos a nossa existência? Como projetamos nossa individualidade no todo? E como o todo nos trata enquanto indivíduos? Por que o ódio é uma algema que contraditoriamente nos ata e nos distancia? Em quais circunstâncias reproduzimos as crenças de superioridade, e por que acalentamos nossos vazios nessa falácia chamada poder?
É imprescindível nos reposicionarmos a partir do paradigma de igualdade entre todos os seres humanos, vivendo em inter-relação saudável com os outros seres vivos do planeta. Escorregaremos amiúde na lama das nossas imperfeições, mas recomporemos nossos conteúdos necrosados se nos colocarmos no lugar do outro ser humano, sem delegarmos a nenhuma força sobrenatural a nossa salvação individual e coletiva e abandonando a nossa adolescência sapiens sapiens para entrarmos na vida adulta.
Projetamos nossa ambição por dominar o próximo nas diversas formas de organização econômica e social por desprezarmos nossas potencialidades humanas e ignorando outras dimensões de nossa consciência. O ódio será extinto a medida da nossa progressão enquanto humanidade, que nos libertará da manipulação ideológica que serve a interesses escusos de grupamentos políticos e religiosos.
Um dos parâmetros da nossa evolução como raça humana é a capacidade de nos identificarmos como seres de uma mesma espécie, interdependentes na construção coletiva, e independentes no desenvolvimento individual. Se nos pautarmos por valores universais de fraternidade, construindo nossa vida interior pelo caminho do autoconhecimento, qualificaremos nossa existência física e ela não será desperdiçada em objetivos materialistas, fugazes e superficiais. Fórmula simplista e inocente? É bem possível, mas para onde as complexas elaborações teóricas, carentes de sabedoria e das premissas de igualdade e busca do bem comum tem nos conduzido?
Quando sentir ódio, cuspa no espelho. Não é o outro. É você que o ódio reflete.